A jurisprudência, especialmente a partir de 2015, tem passado por profundas alterações no tocante ao reconhecimento da capacidade civil da pessoa com deficiência e à fixação das medidas de apoio ao exercício desta capacidade. Tal guinada jurisprudencial decorre do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), editado em consonância com a Convenção de Nova York (Decreto nº 6.949/2009), que ingressou no ordenamento jurídico brasileiro com status constitucional, cumprindo os requisitos do § 3º do art. 5º da Constituição Federal.
A Convenção e o Estatuto conceituam a pessoa com deficiência a partir de uma compreensão holística, que considera as características do indivíduo em interação com um ambiente hostil a diversidades, o que acaba por impor barreiras ao exercício de sua participação na sociedade em igualdade de oportunidades com os demais.
Com as alterações promovidas pelo Estatuto nos arts. 3º e 4º do Código Civil, reconhece-se a plena capacidade civil da pessoa com deficiência, dissociando-se deficiência de incapacidade (12.STJ).
Abandona-se o antigo modelo de interdição total que, sob o argumento de proteger a pessoa com deficiência, acabava por segregá-la. Paulatinamente, a jurisprudência vem reconhecendo a prevalência de medidas de apoio ao exercício da capacidade civil da pessoa com deficiência, quando necessárias, em detrimento da substituição da sua vontade (4.TJSP, 5.TJSP). Ganha espaço a “tomada de decisão apoiada”, introduzida no ordenamento jurídico brasileiro pelo Estatuto, consistente em um procedimento pelo qual a pessoa com deficiência elege ao menos duas pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhe os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade (17.TJPR, 20.TJAC, 13.TJSE). Ressalte-se que a tomada de decisão apoiada não se confunde com o mandato, que, porém, também tem sido reconhecido pela jurisprudência como forma de apoio ao exercício da capacidade da pessoa com deficiência (11.TJRS).
Nesse contexto, a curatela ganha novos contornos e passa a ser compreendida como medida excepcional. Visando à inclusão, busca-se o máximo aproveitamento das potencialidades e habilidades das pessoas com deficiência (1.TJSP, 2.TJSP, 3.TJSP, 8.TJDFT, 9.TJRS, 14.TJSE, 18.TJPE, 20.TJAC), devendo a eventual curatela ser fixada em observância às condições específicas da pessoa curatelada (7.TJDFT, 9.TJRS), que deve ser avaliada em seu contexto biopsicossocial (7.TJDFT, 15.TJMS), por meio de perícia multidisciplinar que considere as suas peculiaridades em relação ao seu contexto social e de vida. A jurisprudência passa a reconhecer a insuficiência do laudo médico para essa necessária avaliação holística (1.TJSP, 3.TJSP). Privilegia-se o contato do Poder Judiciário com a pessoa com deficiência (2.TJSP, 4.TJSP, 8.TJDFT), exatamente para se chegar à máxima compreensão de suas condições e características, a fim de que a definição da curatela seja proporcional, adequada e modulada ao caso concreto, limitada temporalmente (19. TJMT),1 admitindo-se a curatela compartilhada (6.TJSP).
A jurisprudência tem reconhecido a limitação da curatela apenas aos atos de natureza negocial ou patrimonial (9.TJRS, 10.TJRS, 16.TJAM), não alcançando o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.2 Por fim, os tribunais têm reconhecido que a curatela não pode ser exigência para a obtenção de benefícios assistenciais3 (5.TJSP, 17.TJPR).
Do exposto, verifica-se uma jurisprudência em construção, no sentido do pleno reconhecimento da capacidade da pessoa com deficiência e da promoção da sua inclusão, com valorização de seus atributos e potencialidades e consideração da sua vontade, na medida das possibilidades, com vistas a promover a sua autonomia e a sua dignidade. Grande tem sido o debate sobre a aplicação das novas premissas da capacidade civil às curatelas definidas no modelo anterior, especialmente porque seus efeitos se protraem no tempo e tais processos, por serem de jurisdição voluntária, não produzem coisa julgada material.
1 Conforme art. 84 do Estatuto.
2 Conforme art. 85 do Estatuto.
3 Conforme art. 110-A da Lei nº 8.213/1991, introduzido pelo Estatuto.
Referências
1. TJSP. Apelação Cível nº 1006647.42.2016.8.26.0322.
2. TJSP. Apelação Cível nº 1012369.45.2019.8.26.0001.
3. TJSP. Agravo Interno Cível nº 2120227.87.2020.8.26.0000/50000.
4. TJSP. Apelação Cível nº 1003559.90.2018.8.26.0268.
5. TJSP. Apelação Cível nº 0056408.81.2012.8.26.0554.
6. TJSP. Apelação Cível nº 1005036.02.2017.8.26.0619.
7. TJDFT. Agravo de Instrumento nº 0713419.79.2020.8.07.0000.
8. TJDFT. Apelação Cível nº 0740584.24.2018.8.07.0016.
9. TJRS. Apelação Cível nº 0136405.72.2019.8.21.7000.
10. TJRS. Apelação Cível nº 0310666.16.2019.8.21.7000.
11. TJRS. Apelação Cível nº 0299695.06.2018.8.21.7000.
12. STJ. Recurso Especial nº 1.694.984-MS.
13. TJSE. Apelação Cível nº 202000715659.
14. TJSE. Apelação Cível nº 201900731594.
15. TJMS. Apelação Cível nº 0801658.46.2015.8.12.0016.
16. TJAM. Apelação Cível nº 0002061.84.2016.8.04.0000.
17. TJPR. Apelação Cível nº 0000083.94.2005.8.16.0171.
18. TJPE. Apelação Cível nº 0010518.90.2015.8.17.2001.
19. TJMT. Apelação Cível nº 84157/2017.
20. TJAC. Apelação Cível nº 0700026.32.2014.8.01.0011.