Arystóbulo de Oliveira Freitas, segunda-feira, 4 de maio de 2020
As reflexões aqui apresentadas sobre o Direito Privado nos convidam a uma profunda discussão sobre as possíveis e relevantes modificações que certamente virão a povoar os debates jurídicos no curso dos próximos meses.
Estávamos todos na sala onde são ministradas as aulas magnas da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, no segundo pavimento do prédio antigo.
Alunos de graduação, em sua grande maioria com menos de 20 anos. Uma vida inteira por perseguir: advogadas, juízes, promotoras, defensores públicos, e vários desgarrados para outras carreiras ou atividades, total ou parcialmente desconectadas do Direito.
Primeiro ano da década de 1980, segundo ano do nosso curso de Direito. Lembranças recentes da ilegal e truculenta invasão do campus, incêndio criminoso no Tuca, primeira eleição direta para reitoria (doutora Nadir Kfouri), com voto de estudantes, professores e funcionários.
Eis que nos deparamos com o professor Walter Ceneviva. Civilista já consagrado, apesar de desconhecido desses jovens jejunos; elegante no andar e vestir, fala suave, corretíssima, sem exageros ou tecnicismos arrogantes e desnecessários. Humor refinado e em dosagem medicamentosa. Memória prodigiosa.
Em uma das aulas, sobre direitos da personalidade, iniciou sua preleção com algumas perguntas: alguém conhece Maria da Graça Costa Penna Burgos, Sebastião Rodrigues Maia, Senor Abravanel?
Todos imaginavam que poderiam ser pessoas famosas, mas não eram conhecidas pelos nomes completos, submetidos a registros oficiais.
A partir daí, com essa inteligente conexão com a realidade dos alunos, ele passou a explicar o direito ao pseudônimo, nome artístico, e daí ampliando as explicações para o direito da personalidade (para quem não se recorda: Gal Costa, Tim Maia e Silvio Santos).
A nova Constituição trouxe significativas mudanças na estrutura do Poder Judiciário.
Esse brevíssimo exemplo ficou para sempre na memória daqueles, como o autor desse breve texto, que tiveram a alegria, sorte e grande honra de terem vivido os tempos em que o corpo docente do curso de Direito, da PUC de São Paulo, contava com o professor Walter Ceneviva.
Nossa turma de 1984 foi a última para a qual o professor Walter exerceu o seu magistério. Não é demais repetir o que se disse na tradição oral: Ceneviva é o exemplo vivo e pulsante da excelência no ensinar e transmitir aos jovens (e aos também não jovens) o caminho para a compreensão da complexidade que cerca os conceitos e teorias jurídicas.
A partir dessas lembranças, sentimo-nos no dever de apresentar algumas reflexões sobre o Direito Privado, até mesmo para homenagear o nosso grande mestre Ceneviva.
Os anos 1980 foram de grande importância para as transformações sociais e jurídicas que iriam ocorrer nas décadas seguintes, notadamente após a promulgação da Constituição Federal (CF) de 1988.
A codificação de 1916 apresentava os alicerces do Direito Civil (patrimônio, família e contratos) permeados pelo individualismo e voluntarismo. Na década de 1980, para entendermos as substanciais mudanças que impactaram a produção legislativa e nosso sistema jurídico, vale recordarmos alguns eventos sociais e políticos que refletiam o ambiente e as tensões da época.
A queda do muro de Berlim (simbolismo do fim da Guerra Fria), o movimento democrático das “Diretas Já” e o fim do regime militar bem representaram o início de uma nova visão sobre o mundo e a tendência do protagonismo de grupos sociais e instituições representativas de coletividades para o caminhar em direção de iniciativas voltadas para a proteção e defesa dos interesses difusos e coletivos, em contraposição ao excessivo individualismo que até então prevalecia.
Mais ainda, pudemos constatar a maior presença do Estado nas relações interpessoais e na economia, de um modo geral. Código de Defesa do Consumidor, Lei de Proteção ao Meio Ambiente, Lei da Ação Civil Pública, Lei de Locações são exemplos de dirigismo típico dos anos 1980 e seguintes.
A nova Constituição amalgamou todas essas tendências e trouxe significativas mudanças na estrutura do Poder Judiciário. Para o que importa a esse texto, o Supremo Tribunal Federal (STF) passou a exercer com mais vigor e amplitude as competências constitucionais, tão adormecidas nos anos do regime militar.
Diante da estrutura principiológica de nossa Constituição, gradualmente o STF passou a redimensionar a antiga e já desgastada divisão entre Direito Privado e Direito Público. Vivenciamos, assim, os primeiros sinais do que passou a ser chamado de neoconstitucionalismo.
Ao invés da capital importância dada ao Direito Privado e seus institutos (propriedade, contratos, família e sucessões), na dimensão voluntarista e intersubjetiva, passou-se a considerar, na construção jurisprudencial, os valores e princípios da dignidade humana, boa-fé e probidade nas relações jurídicas.
O jurista Gustavo Tepedino reconhece, ademais, três conquistas que impactaram a cultura jurídica brasileira na órbita das mudanças acima,1 identificando, com singular objetividade, as principais transformações aqui narradas.
Nas décadas seguintes à promulgação da CF, houve uma grande produção legislativa sob as premissas acima mencionadas. Vale destacar aqui o novo Código Civil (CC) de janeiro de 2002, que trouxe significativos avanços na eticidade, probidade e boa-fé das relações privadas. Na Exposição de Motivos elaborada pelo supervisor da Comissão Revisora e Elaboradora do CC, professor Miguel Reale, ficou evidenciada a intenção de não só trazer maior concretude ao principal alicerce legislativo das relações privadas, como também de reduzir o protagonismo do individualismo nas relações jurídicas.2
Nesse contexto, a teoria neoconstitucional ou pós-positivista ganhou musculatura, passando a permear a prevalência das normas, princípios e valores constitucionais nas diversas relações jurídicas, em fenômeno que passou a se denominar de “constitucionalização” das diversas dimensões relacionais do Direito.
Isso porque o positivismo jurídico não mais poderia responder aos anseios sociais e políticos contemporâneos. O jusfilósofo Norberto Bobbio bem demonstra essa característica do positivismo, reforçando a sua abordagem avalorativa do Direito.3
Então, a partir do início da década de 1990, o STF passou, cada vez com mais frequência, a adotar os paradigmas do neoconstitucionalismo em suas decisões.
Cita-se, a título de exemplo, a adoção dos direitos fundamentais em questões de Direito Privado, tanto na órbita vertical (privado-público) como na horizontal (privado-privado). No recurso extraordinário 201.819-8, de relatoria da ministra Ellen Gracie, a discussão a respeito do tema aflorou com ênfase na prevalência dos direitos fundamentais, mesmo em se tratando de relações de Direito Privado. Essa decisão veio a ratificar uma tendência do STF, que se havia manifestado, ainda embrionariamente, desde a metade dos anos 1990 (recursos extraordinários 158.215, 160.222 e 161.243).4
Tais decisões demonstram, no tema específico, que a constitucionalização do Direito Privado foi, pouco a pouco, permeando as decisões do STF (não se pode esquecer que essa orientação foi acentuada, nas décadas seguintes, com temas da área de família e sucessões – união homoafetiva, sucessão em união estável etc.).
Essa tendência provocou, e vem provocando, crítica sobre regras exegéticas adotadas pela Suprema Corte, na medida em que a dimensão pós-positivista dos julgados cria insegurança quanto às alterações na jurisprudência da Corte.
A reflexão até agora apresentada traz para o Direito Privado paradigmas de aplicação e interpretação, levando em consideração as alterações constitucionais havidas, além daquelas de natureza legal, restringindo cada vez mais o viés individualista e voluntarista. Por outro lado, o dirigismo contratual levou nossos tribunais a intensificar a intervenção do Estado nas relações negociais (locação, relação de consumo, franquia, etc.).
Há também de se ressaltar que a tendência da predominância do neoconstitucionalismo em nosso STF foi definidora da denominada “constitucionalização do Direito Privado”, aportando princípios e normas constitucionais na interpretação de questões de Direito Privado, notadamente no que se refere aos direitos fundamentais.
Como visto, durante décadas, desde final dos anos 1980, vislumbramos mudanças legislativas e jurisprudenciais que, no curso de 30 anos, impactaram a aplicação e interpretação do Direito Privado em nosso país, provocando a alteração da cultura jurídica, dos negócios jurídicos, das práticas empresariais, assim como das guidelines das agências reguladoras.
A constitucionalização do Direito Privado foi, pouco a pouco, permeando as decisões do STF.
Essas alterações, todas com grande impacto na sociedade brasileira, foram promovidas em determinada conjuntura social, política e econômica, o que não significa nem impõe a respectiva perenização.
Com efeito, a promulgação de leis recentes (por exemplo, Lei da Liberdade Econômica – lei 13.874/19, Lei de Franquia – lei 13.966/19) vem sinalizando algumas mudanças de paradigmas nas normas de Direito Privado. O reforço de regras que atribuem força e amplitude aos ajustes negociais, privilegiando as relações intersubjetivas, a redução das hipóteses de intervenção do Estado nas relações negociais, maior limitação na responsabilização do quotista ou acionista para as hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica, etc., tudo vem sinalizando uma revalorização do individualismo nas questões relacionadas com Direito Privado.
Essas novas balizas legislativas, acompanhadas de importantes alterações no cenário político, social e econômico de nosso país, poderão, com certa margem de certeza, impactar alterações jurisprudenciais, especialmente perante a Suprema Corte, principalmente diante da proximidade de mudança na composição do STF.
As reflexões aqui apresentadas sobre o Direito Privado nos convidam a uma profunda discussão sobre as possíveis e relevantes modificações que certamente virão a povoar os debates jurídicos no curso dos próximos meses.
Não poderíamos deixar de encerrar esse breve texto para enaltecer a iniciativa da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP), sob a coordenadoria do doutor Antonio Ruiz Filho, seu ex-presidente, na decisão de homenagear o grande jurista e professor Walter Ceneviva.
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1 “A partir daí três significativas conquistas se estabeleceram fortemente na cultura jurídica brasileira, na esteira do que ocorreu na Europa continental, que, desde o segundo pós-guerra, indica a progressiva funcionalização das relações jurídicas patrimoniais a valores extrapatrimoniais. A primeira conquista consiste na descoberta do significado relativo e histórico dos conceitos jurídicos, antes vistos como neutros e absolutos. Relativizaram-se os conceitos, a partir da compreensão de que o direito é um fenômeno histórico e social, forjado na tensão dialética entre norma e o fato. A segunda conquista da cultura jurídica contemporânea é a superação da rígida dicotomia entre direito público e o direito privado. […] A terceira conquista, finalmente, revela-se na absorção definitiva, pelo Texto Constitucional, no Brasil com alhures, dos valores que presidem a iniciativa econômica privada, a família, a propriedade e demais institutos do direito civil, demonstrando que tais matérias não se circunscrevem mais, exclusivamente, no recesso do espaço privado, inserindo-se, ao contrário, na ordem pública constitucional, antes preocupada exclusivamente com matérias do chamado direito público (circunscritas às relações entre o cidadão e o Estado)” (TEPEDINO, 2012, p. 15-21).
2 “Não é sem motivo que reitero esses dois princípios, essencialmente complementares, pois o grande risco de tão reclamada socialização do Direito consiste na perda dos valores particulares dos indivíduos: transpessoais ou comuns aos atos humanos, sendo indispensável, ao contrário, que o individual ou o concreto se balance e se dinamize com o serial ou o coletivo, numa unidade superior de sentido ético. […] O que se tem em vista é, em suma, uma estrutura normativa concreta, isto é, destituída de qualquer apego a meros valores formais e abstratos. Esse objetivo de concretude impõe soluções que deixam margem ao juiz e à doutrina, com frequente apelo a conceitos integradores da compreensão ética, tal como os de boa-fé, equidade, probidade, finalidade social do direito, equivalência das prestações etc. […] A ‘exigência de concreção’ surge exatamente da contingência insuperável de permanente adequação dos modelos jurídicos aos fatos sociais’ in fieri” (NOVO CÓDIGO CIVIL, 2002, p. 35).
3 “O positivismo nasce do esforço de transformar o estudo do direito numa verdadeira e adequada ciência que tivesse as mesmas características das ciências físico-matemáticas, naturais e sociais. Ora a característica fundamental da ciência consiste em sua avaloratividade, isto é, na distinção entre juízos de fato e juízos de valor e na rigorosa exclusão destes últimos do campo científico: a ciência consiste somente em juízos de fato. […] O positivismo jurídico representa, portanto, o estudo do direito como fato, não como valor: na definição do direito deve ser excluída toda qualificação que seja fundada num juízo de valor e que comporte a distinção do próprio direito em bom e mau, justo e injusto. O direito, objeto da ciência jurídica, é aquele que efetivamente se manifesta na realidade histórico-social; o juspositivista estuda tal direito real sem se perguntar se além deste existe também um direito ideal (como aquele natural), sem examinar se o primeiro responde ou não ao segundo e, sobretudo, sem fazer depender a validade do direito real da sua correspondência com o direito ideal” (BOBBIO, 2006, p. 135-136).
4 “[…] um fenômeno facilmente observável em sistemas jurídicos de jurisdição constitucional – a chamada ‘constitucionalização do direito privado’, mais especificamente do direito civil. Noutras palavras, as relações privadas, aquelas que até bem pouco tempo se regiam exclusivamente pelo direito civil, hoje sofrem o influxo dos princípios do direito público, emanados predominantemente das decisões proferidas pelos órgãos de jurisdição constitucional” (recurso extraordinário 201.819-8, rel. min. Ellen Gracie).
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BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do direito. Compiladas por Nello Morra; tradução e notas de Márcio Pugliese, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006.
NOVO CÓDIGO CIVIL: Exposição de Motivos e Texto Sancionado. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2002.
TEPEDINO, Gustavo. Marchas e contramarchas da constitucionalização do direito civil: A interpretação do direito privado à luz da Constituição Federal. Synthesis, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 15-21, 2012.
O artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, ano XXXX, nº 145, de abril de 2020.