Silvia Leticia de ALMEIDA
Marcelo FIGUEIREDO
Argumenta
Journal Law
n. 35 p. 283-306 jul/dez 2021
Como citar este artigo:
ALMEIDA, Silvia, FIGUEIREDO, Marcelo. O redesenho, à luz dos direitos humanos, do papel dos apoiadores nas medidas de suporte ao exercício da capacidade civil pelas pessoas com deficiência no Brasil. Argumenta Journal Law, Jacarezinho – PR, Brasil, n. 35, 2021, p. 283-306.
Data da submissão: 02/11/2020 Data da aprovação: 20/02/2021
SUMÁRIO:
1. Introdução; 2. A compreensão da pessoa com deficiência em seu contexto social; 3. A capacidade legal das pessoas com deficiência; 4. As medidas de apoio ao exercício da capacidade das pessoas com deficiência; 5. Conclusão: os desafios impostos aos apoiadores; Referências.
RESUMO:
Objetiva-se com o presente artigo uma análise da capacidade civil da pessoa com deficiência, ob- servadas as alterações introduzidas no ordenamento jurídico brasileiro pela Convenção de Nova York e pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, especial- mente no tocante aos relevantes desafios impostos aos apoiadores.
ABSTRACT:
This article aims to analyze the civil capacity of persons with disabil- ities, in the light of the changes introduced in the Brazilian legal system by the New York Convention and the Brazilian Statute of Persons with Disabilities, particularly with regard to the relevant challenges imposed on supporters.
RESUMEN:
El objetivo del presente artículo es hacer un análisis de la capaci- dad civil de las personas en situación de discapacidad, considerando los cambios introducidos en el sistema legal brasileño por la Convención de Nueva York y por el Estatuto de la Persona en Situación de Discapacidad, especialmente con respecto a los desafíos relevantes que se plantean a los apoyadores.
PALAVRAS-CHAVE:
Pessoa com deficiência; Capacidade civil; Curatela; Tomada de deci- são apoiada; Apoiadores.
KEYWORDS:
Persons with disabilities; Civil capacity; Curatorship; Supported de- cision-making; Supporters.
PALABRAS CLAVE:
Persona en situación de discapacidad; Capacidad civil; Curatela; Toma de decisión apoyada; Apoyadores.
1. INTRODUÇÃO
A capacidade legal das pessoas com deficiência sofreu relevantes transformações no ordenamento jurídico brasileiro, assim como as medi- das de apoio ao seu exercício. Rompendo com um passado de invisibili- dade das pessoas com deficiência, um novo modelo é inaugurado, dentro de uma proposta de inclusão, promoção da autonomia e reconhecimento dos seus direitos humanos.
O presente artigo se propõe a analisar tais mudanças, promovidas especialmente pela Convenção de Nova York1 e pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência2, inseridas em um novo paradigma de compreensão dos impedimentos das pessoas com deficiência em interface com as barreiras impostas pela sociedade, que dificultam ou impedem o exercício de seus direitos.
Sob esse prisma, será analisado o papel dos apoiadores e as dificul- dades cotidianas na construção do modelo emancipatório disposto pelo plexo normativo vigente.
2. A COMPREENSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA EM SEU CONTEXTO SOCIAL
Como resultado de um movimento que teve início nos anos 80 do século passado, a abordagem do tema da pessoa com deficiência sofreu profundas alterações nas duas últimas décadas, com a instauração de um novo paradigma. Em períodos anteriores, porém, a ausência de normati- vidade adequada, sem o reconhecimento de seus direitos humanos, impôs às pessoas com deficiência situações de rejeição e exclusão.
As Constituições brasileiras anteriores a 1.988, praticamente não abordaram o tema e, pior, tiveram positivada a discriminação em face das pessoas com deficiência, ao suspenderem seus direitos, justamente em razão da sua condição. A Constituição outorgada em 1.824, estabelecia no inciso I do artigo 8o a suspensão do exercício dos direitos políticos por incapacidade física ou moral. Na Constituição de 1.891, a restrição às pessoas com deficiência era disposta no §1o do artigo 71, que determinava a suspensão dos direitos de cidadão brasileiro por incapacidade física ou moral. A Constituição Federal de 1.934 trouxe outra abordagem do tema, mas ainda no sentido de restringir direitos das pessoas com deficiência: conforme a alínea a do artigo 110 daquela Constituição, os direitos políti- cos eram suspensos por incapacidade civil absoluta. Como a Constituição de 1.934 não trazia o conceito de incapacidade civil absoluta, sua com- preensão remetia ao Código Civil de 1.916, que estabelecia que, dentre outros, eram absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os loucos de todo o gênero e os surdos-mudos que não pudes- sem exprimir a sua vontade3. Novamente, e ainda durante a vigência do Código Civil de 1.916, a Constituição Federal de 1.937 suspendia os di- reitos políticos das pessoas absolutamente incapazes, em seu artigo 118, alínea a, restrição reproduzida na Constituição Federal de 1.946, em seu artigo 135, §1o, inciso I, na Constituição Federal de 1.967, no artigo 144, inciso I, alínea a e na Emenda Constitucional no 01 de 1.969, no artigo 149, §2o, alínea ‘b’.
Apenas na Emenda Constitucional no 12, de 1.978, o tema teve ade- quada atenção. Destinada a assegura(r) aos Deficientes a melhoria de sua condição social e econômica, a Emenda tratou em seu artigo único sobre educação, assistência e reabilitação, reinserção na vida econômi- ca e social, proibição de discriminação e acessibilidade das pessoas com deficiência. Apesar da redação enxuta, representou indiscutível avanço, minguado, porém, pelo contexto histórico de desvalorização generalizada dos direitos fundamentais pela Ditadura Militar4.
O artigo 15, inciso II, da Constituição Federal de 1.988 manteve o entendimento acerca da suspensão dos direitos políticos nos casos de in- capacidade civil absoluta. Como aqui já se asseverou, o Código Civil de 1.916 considerava absolutamente incapazes os loucos de todo gênero e os surdos-mudos que não pudessem exprimir a sua vontade. Ocorre que, em 2.002, na vigência da Constituição de 1.988, ingressou no ordenamento jurídico brasileiro um novo Código Civil5, que abordou a questão da in- capacidade absoluta em seu artigo 3o, estabelecendo, à época, que, dentre outros, eram absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tivessem o necessário discernimento para a prática desses atos e os que, mesmo por causa transitória, não pudessem exprimir sua vontade. Essa discipli- na da incapacidade civil absoluta (e da suspensão dos direitos políticos, por consequência6) vigorou na legislação infraconstitucional até o ano de 2.015, quando sobreveio o Estatuto da Pessoa com Deficiência, cuja profunda alteração na abordagem do tema será tratada adiante. Eis aqui um breve histórico do tratamento dado pelas Constituições brasileiras ao tema da pessoa com deficiência.
Conforme aduzido, a década de 80 do século passado foi fértil no debate sobre a pessoa com deficiência, debate este conduzido especial- mente pelas próprias pessoas com deficiência, sob o lema “nada sobre nós sem nós”. O ano de 1.981 foi considerado o Ano Internacional das Pessoas Deficientes pelas Nações Unidas e o período de 1.983 a 1.992 considerado a Década Internacional das Pessoas Deficientes, denominações utilizadas à época7. Inserido neste debate internacional, o Brasil promulgou a Constituição de 1.988 que, apesar de falhar na abordagem disposta em seu artigo 15, inciso II, como alhures demonstrado, em di- versos artigos, espalhados pelo texto, tratou dos direitos das pessoas com deficiência, como o direito ao trabalho, reserva de vagas em cargos e em- pregos públicos, critérios diferenciados para aposentadoria, preferência no pagamento de débitos de natureza alimentar, previdência e assistência social, educação, acessibilidade e deveres da família, da sociedade e do Estado em relação às crianças e jovens com deficiência.
Posteriormente, por meio do Decreto 3.956, de 8 de outubro de 2.001, o Brasil promulgou a Convenção Interamericana para a Elimina- ção de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (Convenção da Guatemala). Pelo Decreto 6.949, de 25 de agosto de 2.009, foi promulgada a Convenção Internacional sobre os Di- reitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2.007 (Convenção de Nova York). Im- portante destacar que a Convenção de Nova York ingressou no Brasil sob o rito do §3o do artigo 5o da Constituição Federal, tendo, portanto, status constitucional, servindo, assim, de parâmetro de convencionalidade e de constitucionalidade para todo o ordenamento jurídico. Note-se que o tra- tamento dado ao tema pela Constituição de 1.988 encontra harmonia com as disposições da Convenção de Nova York, facilitando o seu ingresso na ordem constitucional. Posteriormente, no ano de 2.015, foi instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), que indica ter como base a Convenção de Nova York.
Este plexo normativo, também integrado pelo Tratado de Marra- queche8 e diversas leis federais, aqui não debatidos em razão do estreito escopo do trabalho, indica uma abordagem integral do tema nas últimas décadas, sob a perspectiva dos direitos humanos, conforme adiante será evidenciado.
Embora a Constituição Federal de 1.988 tenha avançado sobrema- neira no tratamento do tema da pessoa com deficiência, é o ingresso na ordem constitucional da Convenção de Nova York que traz mudança pro- funda, ao reconhecer que a compreensão das questões da pessoa com de- ficiência envolve necessariamente a análise de seu contexto social. Assim define a Convenção de Nova York as pessoas com deficiência: “aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelec- tual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas”9. Está claro que, embora compreenda a deficiência como um conceito em evolução, a Convenção reconhece que qualquer análise da pessoa com deficiência só pode se dar a partir da com- preensão da interação entre as suas características e as barreiras impostas pela sociedade que impedem o pleno exercício de seus direitos10.
Trata-se de uma profunda transformação da percepção da pessoa com deficiência, que passa a ser compreendida no contexto dos direitos humanos, sob o enfoque da diversidade humana, da inclusão social, do reconhecimento e respeito por sua dignidade inerente. O modelo social traz a mesma compreensão que baseia os direitos humanos de respeito pela dignidade, igualdade e solidariedade. Visa a eliminação da opressão às pessoas com deficiência, ignoradas pela construção de modelos sociais que as excluem.
Para o presente trabalho, importa avançar na compreensão acerca das barreiras impostas às pessoas com deficiência, cujo preâmbulo da Convenção esclarece que decorrem de atitudes e do ambiente que impe- dem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igual- dade de oportunidades com as demais11.
Embora a Convenção não tenha delimitado o conceito, o Estatuto da Pessoa com Deficiência esclareceu o que pode ser considerado barreira, trazendo rol que, apesar de não exaustivo (e é importante que não seja, pois, tal como o conceito de deficiência, trata-se de conceito dinâmico e em construção), baliza as dificuldades enfrentadas pelas pessoas com deficiência que merecem o olhar da sociedade, especialmente do poder público na definição de suas políticas que devem visar a eliminação des- sas barreiras. Conforme o artigo 3o, inciso IV, do Estatuto são barreiras, dentre outros: “qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça a participação social da pessoa, bem como o gozo, a fruição e o exercício de seus direitos à acessibilidade, à liberdade de mo- vimento e de expressão, à comunicação, ao acesso à informação, à com- preensão, à circulação com segurança”. Ainda, mencionado artigo classi- fica os tipos de barreiras em urbanísticas, arquitetônicas, nos transportes, nas comunicações e na informação, atitudinais e tecnológicas.
Em adição, ao tratar dos direitos em espécie, como educação, traba- lho, cultura, esporte, turismo, lazer, transporte e mobilidade, o Estatuto remete sempre à ideia de superação das barreiras como condição para a realização destes direitos, viabilizando a efetiva participação da pessoa com deficiência na sociedade.
A percepção equivocada da pessoa com deficiência está arraigada em nossa sociedade, em razão do longo passado de exclusão e rejeição, como aqui se demonstrou brevemente12. O rompimento das barreiras his- tóricas, socioculturais e comportamentais é um dos maiores desafios im- postos pela Convenção e pelo Estatuto, como instrumentos que são para a proteção dos direitos humanos dessa parcela da sociedade. Inadequada será a sociedade que não lograr êxito na inclusão de todas as pessoas, sem exceção, superando todos os tipos de barreiras que pela própria socie- dade foram criadas ao longo do tempo, como resultado da equivocada compreensão da pessoa com deficiência e consequente sonegação de seus direitos fundamentais. A Convenção de Nova York desloca a compreen- são da pessoa com deficiência da suposta dualidade entre normalidade e anormalidade e propõe essa análise mais rigorosa do despreparo da socie- dade que, desenhada de modo a excluir as pessoas com deficiência, acaba por impor-lhes diversos obstáculos na fruição de seus direitos.
3. A CAPACIDADE LEGAL DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
São princípios que orientam a Convenção de Nova York e que de- vem pautar a atuação dos Estados Partes o respeito pela dignidade ine- rente, autonomia individual e independência das pessoas com deficiência, reconhecendo-se a possibilidade de as pessoas com deficiência fazerem as suas próprias escolhas; não-discriminação, entendida como toda dife- renciação, exclusão ou restrição baseadas na deficiência; plena e efetiva participação e inclusão na sociedade; respeito pela diferença e pela aceita- ção das pessoas com deficiência como parte da diversidade humana e da humanidade; igualdade de oportunidades; acessibilidade; igualdade entre homens e mulheres com deficiência; respeito pelo desenvolvimento das capacidades das crianças com deficiência e pelo direito de as crianças com deficiência preservarem a sua identidade.
De tais princípios é possível extrair o evidente rompimento com o passado de invisibilidade das pessoas com deficiência aqui narrado e a proposta de promoção da sua dignidade, por meio de sua inclusão, a ser constantemente promovida pelos Estados Partes, com um redesenho da sociedade que viabilize a participação de todos, bem como com o apro- veitamento das habilidades das pessoas com deficiência, desenvolvimento de suas potencialidades, reconhecendo-se, ademais, a sua autonomia e ca- pacidade legal, em igualdade de condições com as demais pessoas.
No tocante ao reconhecimento da capacidade das pessoas com de- ficiência, a Convenção inova sobremaneira, ao estabelecer textualmen- te, tendo como ponto de partida os direitos humanos, que é plena a sua capacidade legal, em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida. O artigo 12 da Convenção detalha o reconhe- cimento desta capacidade, impondo deveres aos Estados Partes no senti- do de viabilizá-la: devem as pessoas com deficiência ser reconhecidas em qualquer lugar como pessoas perante a lei13 e devem ser adotadas medidas apropriadas para prover o acesso de pessoas com deficiência ao apoio que necessitarem no exercício de sua capacidade legal, incluindo salvaguardas proporcionais, apropriadas e efetivas para prevenir abusos, respeitando- -se os direitos, a vontade e as preferências da pessoa, garantindo-se o igual direito de possuir ou herdar bens, de controlar as próprias finanças e de ter igual acesso a empréstimos bancários, hipotecas e outras formas de crédito financeiro, não sendo arbitrariamente destituídas de seus bens.
Apesar do ingresso da Convenção de Nova York no Brasil, no ano de 2.009, os avanços da comunidade jurídica foram tímidos no sentido do re- conhecimento da plena capacidade da pessoa com deficiência, certamente em razão das disposições do Código Civil de 2.00214, que, no artigo 3o, reconhecia a incapacidade absoluta dos que, por enfermidade ou deficiên- cia mental, não tivessem o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil e dos que, mesmo por causa transitória, não pudessem exprimir sua vontade e, no artigo 4o reconhecia a relativa incapacidade daqueles que, por deficiência mental, tivessem o discernimento reduzido, bem como dos excepcionais, sem desenvolvimento mental completo. É certo que tais disposições do Código Civil, a partir da ratificação da Con- venção pelo Brasil, não resistiriam a uma análise de convencionalidade e, com o ingresso da Convenção no ordenamento jurídico brasileiro, em 2.009, observados os ditames do §3o do artigo 5o da Constituição Federal, encontrariam óbice no controle de constitucionalidade. Porém, em razão Argumenta Journal Law n. 35 – jul / dez 2021 291 da permanência de uma visão paternalista, distorcida e discriminatória da pessoa com deficiência, pouca atenção15 se deu no Brasil a essa profunda alteração promovida pela Convenção na capacidade legal das pessoas com deficiência, até que sobreveio o Estatuto da Pessoa com Deficiência que, expressamente, revogou tais artigos do Código Civil.
Ainda assim, habituados ao modelo de substituição da vontade das pessoas com deficiência e de desconsideração de sua autonomia, parte da comunidade jurídica passou a defender que o novo regime da capa- cidade legal das pessoas com deficiência representaria desproteção a tais pessoas16, demonstrando incompreensão das alterações normativas e des- conhecimento do contexto de luta que redundou na construção da Con- venção e do Estatuto.
Fato é que, com as expressas previsões do Estatuto da Pessoa com Deficiência, especialmente de seu artigo 6o, e as alterações promovidas ao Código Civil pelo artigo 114, que implicaram na revogação das dispo- sições dos artigos 3o e 4o que tratavam especificamente das pessoas com deficiência, novo regime da capacidade foi positivado no Brasil, não sen- do demais a insistência de frisar que tal regime já poderia ser extraído das disposições da Convenção que tornaram incompatíveis os artigos do Código Civil de 2.002, vigentes à época de sua ratificação pelo Brasil, que desconsideravam a plena capacidade das pessoas com deficiência, mas que o apego ao positivismo infraconstitucional fez com que continuassem sendo invocados por parte da comunidade jurídica.
Esclareça-se que o regime das capacidades vigente no Brasil ante- riormente à Convenção e às alterações promovidas pelo Estatuto da Pes- soa com Deficiência ao Código Civil representava uma barreira jurídica à promoção da dignidade das pessoas com deficiência, em que sua liberdade de fazer escolhas era sistematicamente desrespeitada. Com as mudanças, houve uma definitiva dissociação entre deficiência e incapacidade. O arti- go 6o do Estatuto dispôs expressamente que a deficiência não afeta a plena capacidade da pessoa; mas, foi além: tratou de lançar luz sobre temas ca- ros, porém nebulosos, para as pessoas com deficiência, relativos ao direito ao próprio corpo e à liberdade de ter o seu próprio projeto de vida. Assim, em rol não exaustivo, destacou tal artigo a capacidade da pessoa com de- ficiência de casar-se e constituir união estável; exercer direitos sexuais e reprodutivos; decidir sobre o número de filhos e ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar; conservar sua fer- tilidade, vedada a esterilização compulsória; exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção. É evidente que bastaria o caput do artigo, que reco- nhece a plena capacidade da pessoa com deficiência, para abarcar todas as situações descritas em seus seis incisos. O reforço no detalhamento de tais direitos decorre, evidentemente, da necessidade de se criar uma cultura de reconhecimento e respeito a esses direitos, que, ao longo dos tempos, foram insistentemente sonegados das pessoas com deficiência.
Ao reconhecer a plena capacidade da pessoa com deficiência, obje- tiva-se a sua inclusão na sociedade, em conformidade com o direito in- ternacional dos direitos humanos, em contraposição à ideia paternalista de substituição de sua vontade que acabava por excluí-la não apenas da sociedade, mas da sua própria vida17.
4. AS MEDIDAS DE APOIO AO EXERCÍCIO DA CAPACIDADE DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
Se o regime de capacidades sofreu profunda alteração, como aqui se demonstrou, o mesmo ocorreu com as medidas de suporte ao exercício da capacidade pelas pessoas com deficiência, deixando de ser a interdição o instrumento para viabilizar tal exercício, adotando-se como regra as me- didas de apoio, aos que delas necessitarem, como forma de se preservar a autonomia da pessoa com deficiência. O modelo de decisão substituta é superado, dando espaço ao modelo de decisão apoiada (na forma de curatela ou tomada de decisão apoiada), permitindo-se às pessoas com deficiência o desenvolvimento do seu projeto de vida, na medida de suas possibilidades. Abandona-se a ideia paternalista de hiper proteção das pessoas com deficiência, que carregava consigo a desconsideração da sua dignidade e igualdade e redundava na substituição e desconsideração da sua vontade, para permitir que as pessoas com deficiência tomem o rumo de suas vidas, inclusive com o direito de fazer escolhas erradas, como to- das as demais pessoas.
Cabe aqui uma breve digressão para retomar a questão das barreiras impostas pela sociedade ao exercício dos direitos das pessoas com defi- ciência. Como se viu, há diversos tipos de barreiras impostas pela socie- dade que, em interação com as características das pessoas com deficiência, importam em exclusão. Neste sentido, o modelo de interdição que vigia anteriormente no ordenamento jurídico brasileiro18, uma espécie de “morte civil”, com a completa substituição da vontade do interditado e amplo poder ao curador para agir em seu nome, ainda que em seu bene- fício e interesse, podendo invadir, inclusive, questões de cunho existen- cial, afetas à saúde, religião, reprodução, sexualidade e relações afetivas, importava em barreira jurídica às pessoas com deficiência, violando seus direitos humanos19.
Não raramente, no âmbito dos processos de interdição, desenvol- viam-se relações desiguais de poder entre interditados e curadores, ge- ralmente familiares, estabelecendo-se, por vezes, certo temor e reverência pelas decisões dos curadores, ainda que houvesse discordância com o seu conteúdo. Essa prevalência da vontade dos curadores, em ambientes de intrincadas relações cotidianas de poder, representava nítida barreira aos direitos humanos das pessoas com deficiência, pois aniquilava sua auto- nomia e, por consequência, sua dignidade.
No novo modelo de apoio ao exercício da capacidade da pessoa com deficiência, desenhado especialmente pelo Estatuto, em consonância com as disposições da Convenção, a pessoa com deficiência, se assim necessi- tar, recebe suporte para decidir e para executar as suas decisões. A deci- são, antes apenas tutelada por um terceiro, passa agora a ser vista como um processo, desde a compreensão da questão, a tomada da decisão em si, a reflexão sobre o processo e seus resultados. O reconhecimento da capa- cidade da pessoa com deficiência como premissa, faz emergir um formato de curatela que privilegia a mínima interferência, como medida protetiva extraordinária, proporcional e adequada a cada caso, com decisão mo- tivada e modulada ao caso concreto, que demonstre a preservação dos interesses do curatelado20.
Neste sentido, o artigo 84 do Estatuto da Pessoa com Deficiência traz alterações significativas à curatela, dispondo que sua eventual fixação se limita às questões patrimoniais, não podendo atingir questões existen- ciais, como o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto. Ademais, estabe- lece o Estatuto que a curatela terá sempre caráter temporário e durará o menor tempo possível.
Faz-se necessário aqui um breve esclarecimento sobre as disposições do Estatuto da Pessoa com Deficiência e do Código de Processo Ci- vil sobre a curatela da pessoa com deficiência. O Estatuto da Pessoa com Deficiência foi sancionado em 06 de julho de 2.015, com vacatio legis de cento e oitenta dias, além de outros prazos mais dilatados para obrigações específicas. Entrou em vigor, portanto, em 02 de janeiro de 2.016. Já o Código de Processo Civil21, Lei 13.105, foi sancionado em 16 de março de 2.015, com vacatio legis de um ano da data de sua publicação oficial, fixado o termo final pelo Plenário do Conselho Nacional de Justiça como 18 de março de 2.016. Problema não haveria se a questão tivesse se limi- tado ao fato de que dois diplomas legais disciplinaram o tema da curatela. Diferente disso, porém, a sensibilidade está no fato de o terem feito de forma contraditória, em alguns de seus pontos. Dito em outras palavras, no tocante à curatela da pessoa com deficiência, o Estatuto da Pessoa com Deficiência abordou-a de uma forma, em absoluta consonância com as disposições da Convenção de Nova York, e, pouco mais de dois meses depois (considerada a vigência de ambos), o Código de Processo Civil abordou-a de outra, inaugurando amplo debate na comunidade jurídica e trazendo insegurança às pessoas com deficiência.
O Código de Processo Civil disciplina a curatela nos artigos 747 e seguintes. Denomina a medida, impropriamente, como interdição, reme- tendo à ideia de incapacidade, ao invés de suporte ao exercício pleno da capacidade. Há uma hiper valorização do laudo médico como prova da deficiência (artigo 750), em franca contraposição à proposta de avaliação holística da pessoa com deficiência e de sua interação com as barreiras sociais trazida pela Convenção. No mesmo sentido, a facultatividade do acompanhamento da entrevista (artigo 751, §2o) e da perícia com a pessoa com deficiência por equipe composta por expertos com formação multi- disciplinar (artigos 753, §1o e 756, §2o) conflita com a previsão de avalia- ção biopsicossocial da pessoa com deficiência, quando necessária, pre- vista pelo Estatuto (artigo 2o, §1o)22. Por fim, os artigos 755, §2o, e 757 do Código de Processo Civil estabelecem que, havendo, ao tempo da inter- dição (que assim não deveria ser denominada, como aqui já se destacou), pessoa incapaz sob a guarda e a responsabilidade do interdito (outra im- propriedade), o juiz atribuirá a curatela a quem melhor puder atender aos interesses do interdito e do incapaz, disposição que conflita diretamente com o artigo 6o do Estatuto que, em seu inciso VI estabelece como premissa que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa para exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.
Delimitadas, brevemente, as incongruências entre o Código de Pro- cesso Civil e o Estatuto da Pessoa com Deficiência, é forçoso concluir, também de forma sintética, que qualquer leitura que se proponha deste imbróglio deve ter como objetivo harmonizar a legislação infraconstitu- cional com as disposições da Convenção de Nova York, que, no ordena- mento jurídico brasileiro, tem status constitucional. A tradicional regra de que a lei posterior (Código de Processo Civil, considerada a sua entrada em vigor) revoga a anterior23 (Estatuto da Pessoa com Deficiência, utili- zado o mesmo critério) aqui não se aplica, pois o Estatuto da Pessoa com Deficiência se adequa às disposições da Convenção, o mesmo não ocor- rendo com alguns artigos do Código de Processo Civil, conforme aqui demonstrado. Em conclusão, prevalecem as normas do Estatuto e aque- las do Código de Processo Civil que com elas não conflitarem, tampouco conflitarem com o quanto estabelecido na Convenção de Nova York24.
Feita esta necessária digressão, da leitura convencional e constitucio- nal das disposições do Estatuto e do Código de Processo Civil, extrai-se um modelo de curatela mais humanizado e condizente com a proposta de promoção da dignidade das pessoas com deficiência, em consonância com os ditames da Convenção, especialmente no sentido do item “n” do seu Preâmbulo, que reconhece a importância, para as pessoas com defi- ciência, de sua autonomia e independência individuais, inclusive da li- berdade para fazer as próprias escolhas, viabilizando, assim, a sua plena e efetiva participação e inclusão na sociedade.
Neste sentido, destaca-se, no novo modelo e conforme artigo 1.768, IV, do Código Civil25, a possibilidade de iniciativa do procedimento e es- colha do curador pelo próprio curatelado, que, ciente de suas limitações e possibilidades, vislumbra a curatela como salvaguarda necessária ao exer- cício de sua capacidade, prestigiando-se, assim, a sua autonomia e as suas preferências. Observados os diferentes tipos e níveis de deficiências men- tal, intelectual e sensorial, a autocuratela mostra-se possível e desejável26.
O Estatuto da Pessoa com Deficiência inaugurou também a possibi- lidade expressa de curatela compartilhada, em seu artigo 114, que promo- ve a inclusão ao Código Civil do artigo 1775-A, permitindo a divisão de obrigações e responsabilidades entre os curadores. Embora a jurisprudên- cia já reconhecesse tal possibilidade, sua positivação representou um ga- nho para as pessoas com deficiência, ao facultar um apoio mais adequado e direcionado aos diversos tipos de questões do curatelado.
Consta do artigo 12 da Convenção que as medidas relativas ao exer- cício da capacidade devem ser submetidas à revisão regular por uma au- toridade ou órgão judiciário competente, independente e imparcial. A questão não foi disciplinada expressamente pela legislação infraconstitu- cional brasileira, salvo breve menção pelo Estatuto à temporariedade das medidas. Ao contrário, o artigo 756 do Código de Processo Civil manteve a disciplina anterior de levantamento da curatela, total ou parcial, me- diante a formulação de um pedido incidental pelos legitimados. Propõe a Convenção, porém, que a revisão se dê por regular iniciativa do próprio Estado, evitando, assim, que as pessoas com deficiência se tornem reféns de quaisquer arbitrariedades de seus curadores. Embora os diplomas le- gais não tenham fixado procedimentos específicos, é possível extrair da própria Convenção que, repita-se, tem status constitucional e plena apli- cabilidade, este dever dos juízes, promotores, advogados, sociedade, fami- liares e da própria pessoa com deficiência. Sendo assim, uma alternativa à lacuna legal é fixar a periodicidade de sua revisão na própria sentença que definir os termos da curatela; outra opção é fazer uso do prazo anual de prestação de contas, conforme previsão do artigo 84, §4o, do Estatuto da Pessoa com Deficiência, para também realizar a revisão da curatela.
Pontuadas as principais características da nova curatela da pessoa com deficiência, é possível denotar um rompimento com o modelo an- terior da interdição, em que a autonomia e as preferências das pessoas com deficiência eram desconsideradas, com as suas decisões totalmente tuteladas por terceiros. Em síntese, a nova curatela, que deve ser adequada ao caso concreto, privilegia a dignidade da pessoa com deficiência, que deve ter voz e vez, na medida de suas possibilidades. A temporariedade da decisão e sua sujeição à revisão periódica indicam que, ao contrário do que ocorria no modelo da interdição, a sentença que define os termos da curatela não se trata de um decreto de morte civil, mas de um meio de salvaguarda temporária para viabilizar o exercício da capacidade pela pessoa com deficiência.
Esclareça-se que, se a situação exigir, como, por exemplo, em um caso de deficiência intelectual gravíssima, que comprometa severamente a capacidade de escolha da pessoa com deficiência, haverá a possibilidade de uma curatela mais ampla, incidindo, inclusive, sobre questões existen- ciais. Chega-se a tal conclusão a partir da leitura do artigo 1772 do Código Civil (com a alteração promovida pelo Estatuto, que aqui se entende não ter sido revogada pelo Código de Processo Civil), que estabelece que o juiz fixará a curatela conforme as potencialidades da pessoa. A curatela ampla, porém, apesar de admitida, não é a regra e essa é a mens legis da Convenção.
Além deste novo modelo de curatela, adequado aos direitos huma- nos das pessoas com deficiência, como acima se demonstrou, o Estatuto da Pessoa com Deficiência inseriu no ordenamento jurídico brasileiro a “tomada de decisão apoiada”, consistente em um processo judicial volun- tário, por meio do qual a própria pessoa com deficiência elege ao menos duas pessoas de sua confiança para que prestem auxílio em suas decisões sobre atos da vida civil, fornecendo-lhe os elementos e informações neces- sários para que possa exercer sua capacidade. O instituto está disciplinado no artigo 1.783-A do Código Civil, inserido pelas alterações promovidas pelo artigo 114 do Estatuto.
A pessoa com deficiência e seus apoiadores constroem um termo onde deve constar os limites do apoio a ser oferecido e os compromissos dos apoiadores, inclusive o prazo de vigência do acordo e a deferência à vontade, aos direitos e aos interesses da pessoa apoiada, seguindo os di- tames da Convenção de respeito à autonomia da pessoa com deficiência. A qualquer tempo, a pessoa com deficiência pode solicitar o término do acordo firmado em processo de tomada de decisão apoiada.
Destaque-se que, no procedimento de tomada de decisão apoiada, o suporte ao juiz por uma equipe multidisciplinar não é facultativo, como no procedimento da curatela previsto no Código de Processo Civil, a in- dicar, mais uma vez, que as disposições da curatela neste sentido merecem uma leitura convencional e constitucional, para compreender como obri- gatória a presença da equipe multidisciplinar, viabilizando uma análise holística da pessoa com deficiência.
O instituto é novo e ainda pouco utilizado pela comunidade jurídi- ca, talvez pela persistência da equivocada percepção da pessoa com defi- ciência e da desconsideração de seus direitos humanos. Trata-se, porém, de medida que, desde o início do procedimento, com a possibilidade de escolha dos apoiadores, valoriza a opinião e a vontade da pessoa com de- ficiência, viabilizando apoio dosado às necessidades, sem a imposição da vontade dos apoiadores e sem invasão às questões existenciais da pessoa com deficiência, em absoluta harmonia com as propostas da Convenção de Nova York de promoção da inclusão e reconhecimento da dignidade inerente da pessoa com deficiência27.
5. CONCLUSÃO: OS DESAFIOS IMPOSTOS AOS APOIADORES
Tendo sido analisadas as características da capacidade legal da pes- soa com deficiência e delineados os novos formatos das medidas de apoio ao exercício dessa capacidade, que em muito diferem do modelo anterior de substituição da vontade e desconsideração das preferências das pessoas com deficiência, passa-se à análise das dificuldades que se apresentam aos apoiadores, aqui entendidos como aqueles que exercem o apoio nos pro- cedimentos de curatela e de tomada de decisão apoiada. É evidente que os desafios não são apenas dos apoiadores, mas do Estado, da comunidade, da família e das próprias pessoas com deficiência. O recorte do presente artigo, porém, é no sentido de pontuar o relevante papel desempenhado por esses apoiadores na construção cotidiana das propostas trazidas pela Convenção de Nova York, papel que carrega consigo desafios estruturais que merecem um olhar específico, sob o enfoque dos direitos humanos.
Como aqui se demonstrou, a capacidade da pessoa com deficiência é plena e aqueles que precisarem de auxílio para o exercício desta capaci- dade devem ter à disposição meios adequados às suas necessidades, sendo garantida a todas as pessoas com deficiência a plenitude dos seus direitos humanos, sem discriminação, conforme destacado no item “c” do Preâm- bulo da Convenção, que reafirma a universalidade, a indivisibilidade, a interdependência e a inter-relação de todos os direitos humanos e liber- dades fundamentais.
Desafio que se apresenta aos apoiadores é a disponibilização de meios para se alcançar a vontade da pessoa com deficiência, criando con- dições para a sua ampla manifestação, considerados os diferentes tipos de impedimentos existentes e a sua interação com as diferentes barreiras impostas pela sociedade. Assim, além do papel do Estado e da sociedade neste sentido, incumbe aos apoiadores iniciativas para viabilizar meios assistivos às pessoas com deficiência, promovendo-se a adaptação razoável, quando necessária, para que a pessoa com deficiência tenha condições de manifestar a sua vontade. Garantir a comunicação adequada, se necessá- rio por meio de intérpretes, é, por exemplo, um dos desafios dos apoiado- res no exercício de sua função.
A situação de pobreza a que estão submetidas muitas pessoas com deficiência28 impõe dificuldades específicas aos apoiadores na viabilização do exercício da capacidade dessas pessoas, como o parco acesso à justiça, dificultado pelos custos e por uma linguagem pouco inclusiva, e a falta de acessibilidade, nas próprias moradias, nos transportes e equipamentos públicos e nas escolas públicas. Tais situações infligem aos apoiadores es- forços adicionais.
Uma das obrigações legais dos apoiadores é a de promover, na medi- da do possível, a autonomia da pessoa com deficiência, para que, visando a sua total inclusão, torne-se cada vez mais independente. É o que dis- põe o artigo 758 do Código de Processo Civil. Os apoiadores devem au- xiliar a pessoa com deficiência na compreensão das possibilidades e a ter mais clareza sobre as escolhas, o que não significa, porém, fazer sempre a escolha certa. Neste sentido, a curatela e a tomada de decisão apoiada, se utilizadas adequadamente, apresentam-se como medidas inclusivas e emancipatórias, como facetas da acessibilidade, pois visam a autonomia das pessoas com deficiência, permitindo sua participação na sociedade com contribuições na medida de suas possibilidades, na forma do item “m” do Preâmbulo da Convenção29.
Como demonstrado, as barreiras impostas pela sociedade agravam as dificuldades enfrentadas pelas pessoas com deficiência, embaraçando ou inviabilizando a sua participação em igualdade de condições com as demais pessoas. Assim, é papel dos apoiadores diminuir as barreiras en- frentadas pelas pessoas com deficiência, sendo que, no ambiente de apoio ao exercício da capacidade legal, por meio da curatela e da tomada de decisão apoiada, as barreiras podem estar caracterizadas pelo próprio comportamento dos apoiadores, que, no cotidiano, acabam por exercer indevidas relações de poder com a pessoa com deficiência. O passado de desconsideração das pessoas com deficiência, aqui brevemente delineado, indica a necessidade de rompimento com qualquer percepção discrimi- natória, que deve ser substituída por uma atuação colaborativa da sociedade, especialmente dos apoiadores, que devem agir visando reconhecer a capacidade e desenvolver as habilidades das pessoas com deficiência, respeitando sua vontade, com a cautela de jamais promover ou aprofun- dar barreiras.
O histórico de invisibilidade das pessoas com deficiência e o fato de as mudanças no sentido do reconhecimento de sua plena capacidade se- rem tão recentes e profundas indicam uma possível necessidade de capa- citação específica dos apoiadores para o bom desempenho do seu mister, capacitação esta a ser ofertada pelo Estado. As mudanças são estruturais e rompem com o modelo de substituição de vontade que prevaleceu no Brasil, e no mundo, durante muitos anos, que teve como resultado uma percepção generalizada de que a pessoa com deficiência, em razão de suas demandas específicas, poderia ser alijada do convívio social. O modelo anterior, mais fácil, mas que desconsiderava a dignidade da pessoa com deficiência, arraigou práticas e percepções nocivas, que precisam ser su- peradas para que ocorra a efetiva inclusão da pessoa com deficiência. Os apoiadores têm papel fundamental nesta construção, mas necessitam de informações e suporte adequado, que devem ser viabilizados pelo poder público.
Os apoiadores e a família representam a base de relacionamento das pessoas com deficiência e por isso a importância de estarem alinhados com as propostas da Convenção e do Estatuto. Devem cuidar para que se desenvolvam relações horizontais que representem respeito à diferença e compreensão da deficiência como parte da diversidade humana. Tra- tam-se, porém, de tarefas de grande complexidade, que emergem de um modelo completamente diferente do anterior, que reconhece a plena ca- pacidade da pessoa com deficiência e milita em favor de sua autonomia e inclusão, com imensas dificuldades práticas e cotidianas impostas por uma sociedade desenhada para excluir a pessoa com deficiência.
Bem se vê que o novo modelo de apoio às pessoas com deficiência para o exercício de sua capacidade legal impõe dificuldades adicionais aos apoiadores, que, além da capacitação específica acima sugerida, merecem uma rede de suporte, que conte com profissionais habilitados que possam auxiliá-los na implementação dos direitos das pessoas com deficiência. É papel do poder público viabilizar essa rede de suporte, para que os apoia- dores compreendam a importância do seu papel como instrumentos de inclusão social e promoção da dignidade das pessoas com deficiência. Como afirmam Ana Carla Harmatiuk Matos e Lígia Ziggiotti30, o rico complexo normativo hoje à disposição da pessoa com deficiência é apenas o início de um longo processo de promoção dos direitos humanos dessas pessoas, que deve permear uma construção árdua e cotidiana, em que os apoiadores desempenham papel fundamental.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA LEITE, Flávia Piva; GOMES RIBEIRO, Lauro Luiz; COSTA FILHO, Waldir Macieira da (Coordenadores). Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência. São Paulo: Saraiva, 2016.
AZEVEDO, Rafael Vieira de. A capacidade civil da pessoa com deficiência no Direito brasileiro: reflexões acerca da Convenção de Nova Iorque e do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.
BARBOSA-FOHRMANN, Ana Paula e KIEFER, Sandra Filomena Wag- ner. Modelo social de abordagem dos direitos humanos das pessoas com deficiência. In Direito das pessoas com deficiência psíquica e intelectual nas relações privadas. Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência e Lei Brasileira de Inclusão. Joyceane Bezerra de Menezes (Organizadora). Rio de Janeiro: Processo, 2016.
DIAS, Joelson; FERREIRA, Laíssa da Costa; GUGEL, Maria Apareci- da; COSTA FILHO, WALDIR Macieira da (Organizadores). Novos Co- mentários à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. 3a edição revisada e atualizada. Brasília, Presidência da República, Secretaria de Direitos Humanos – SDH, Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência – SNPD, 2014.
DIDIER JUNIOR, Fredie. Estatuto da Pessoa com Deficiência, Código de Processo Civil de 2015 e Código Civil: uma primeira reflexão. Editorial Fredie Didier Jr. n. 187. Disponível em: http://www.frediedidier.com.br/ editorial/editorial-187/. Acessado em 27 de junho de 2020.
MATOS, Ana Carla Harmatiuk e OLIVEIRA, Lígia Ziggiotti. Além do Es- tatuto da Pessoa com Deficiência: reflexões a partir de uma compreensão dos Direitos Humanos. In Direito das pessoas com deficiência psíquica e intelectual nas relações privadas. Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência e Lei Brasileira de Inclusão. Joyceane Bezerra de Menezes (Organizadora). Rio de Janeiro: Processo, 2016.
MENEZES, Joyceane Bezerra de. O novo instituto da Tomada de Decisão Apoiada: instrumento de apoio ao exercício da capacidade civil da pes- soa com deficiência instituído pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei Brasileira de Inclusão (Lei 13.146/2015. In Direito das pessoas com deficiência psíquica e intelectual nas relações privadas. Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência e Lei Brasileira de Inclusão. Joyceane Bezerra de Menezes (Organizadora). Rio de Janeiro: Processo, 2016.
PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 11a edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
Notas de Fim
1. Decreto 6.949, de 25 de agosto de 2.009. 2. Lei 13.146, de 06 de julho de 2015.
3. “Como absolutamente incapaz, tais indivíduos estavam sujeitos, então, em uma in- terpretação conforme a Constituição, à interdição e à representação em razão da sua incapacidade para exercer os atos negociais da vida civil. Como decorrência dessa visão médico-jurídica, foram segregados e internalizados em instituições especializadas, na medida em que não poderiam se integrar e cooperar, como cidadãos, na sociedade ci- vil”. BARBOSA-FOHRMANN, Ana Paula e KIEFER, Sandra Filomena Wagner. Modelo social de abordagem dos direitos humanos das pessoas com deficiência. In MENEZES, Joyceane Bezerra de (Organizadora). Direito das pessoas com deficiência psíquica e in- telectual nas relações privadas. Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência e Lei Brasileira de Inclusão. Rio de Janeiro: Processo, 2016, página 84.
4. “A história constitucional brasileira revela que dispositivos específicos acerca dos di- reitos das pessoas com deficiências somente puderam ser observados a partir de 1978, com a edição da Emenda Constitucional 12, que representou um marco na defesa des- se grupo. Seu conteúdo pode ser considerado abrangente, uma vez que compreendia os principais direitos das pessoas com deficiência (educação, assistência e reabilitação, proibição de discriminação e acessibilidade). No entanto, a eficácia desta norma ficou comprometida pelo regime ditatorial, que limitou significativamente os direitos e garan- tias individuais”. PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 11a edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, página 548.
5. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
6. Necessário esclarecer que a ratificação pelo Brasil da Convenção de Nova York (dora- vante tratada) passou a exigir uma leitura convencional do artigo 15, inciso II, da CF/88, mas tal questão não será aqui abordada para não impedir a fluidez do texto.
7. In https://nacoesunidas.org/onu-celebra-em-sp-tres-decadas-da-proclamacao-do-a- no-internacional-das-pessoas-com-deficienci/ e http://portal.mec.gov.br/index.php?op- tion=com_docman&view=download&alias=424-cartilha-c&category_slug=documen- tos-pdf&Itemid=30192, acessados em 28 de junho de 2020.
8. Decreto no 9.522, de 8 de outubro de 2.018.
9. Artigo 1o da Convenção de Nova York.
10. “Em seu contexto, uma das questões mais importantes trazidas a lume foi a conso- lidação de um novo paradigma sobre pessoas com deficiência: construído com partici- pa&